Entreouvidos

Dentro dos ônibus que me levam e me trazem, escuto histórias, vejo vidas. Nos caminhos que me são necessários percorrer, ouço, imagino e viajo. Crio enredos, traço desfechos. Como no caso de Daniel e Alice, por exemplo. Hoje em dia ele não se mata mais de trabalhar: não tem mais 20 anos, agora ele quer mais é aproveitar a vida! Fala pra Alice que ela tem que parar de ficar correndo pra lá e pra cá em dois empregos: esse tempo já foi. Que a gente tem que planejar e ralar muito até os 40 anos. Se depois disso não tiver conquistado casa, emprego, família, tem que focar em aproveitar os momentos. Agora ele vive assim. Arrumou um lugar baratinho  pra almoçar no centro e assim, quando chega em casa, tem mais tempo pra si. E pros seus filhotes, motivo de sua dedicação e esforço materiais. Alice parece meditar sobre as palavras de Daniel, mas logo engata outro assunto: o reality show, que ela acompanha 24h/dia, com a assinatura que fez - menos quando a chefe está. Não dá pra ela vacilar, emprego tá difícil, ela não pode se dar ao luxo. Daniel balança a cabeça, decepcionado: Alice não entende... amanhã ela morre e viveu o que?  Ele não cai mais nessa cilada: quer mais é curtir, passear, viajar. Não mede sua felicidade pelas coisas que não tem mais intenção de conquistar, mas pelos momentos que pretende viver! Daniel me faz refletir também e quase divago. Tenho vontade de me virar pra ver seu rosto, identificar aquela voz, criar... Mas logo minha atenção é desviada para o menino que passa pela roleta correndo: outra cena começa. Ele grita para a avó, eufórico, que conseguiu lugares pra eles nos últimos bancos livres do ônibus! Lourdinha saiu com ele um pouco porque, sem escola funcionando, ela é quem fica com ele durante o dia, enquanto os pais trabalham. Jonathan está atento e falante, naquele passeio com a avó: é tudo novidade! A avó parece cansada, mas não perde a paciência e responde a todas as perguntas do neto. "Não, quando a gente chegar em casa, sua mãe não vai estar lá ainda", "vamos passar na padaria sim, porque não tem pão lá em casa, aí a gente vê se dá pra comprar bolo também"... Mas Jonathan tem questões mais profundas: "minha mãe falou que irmão é bom, eu acho que deve ser ótimo! Ano que vem vou ter um, ela falou..." - não consigo ouvir o resto: a motorista dá um freada brusca e assusta a todos! Os óculos de Jonathan quase caem no chão, mas Lourdinha segura a armação a tempo. Outros passageiros reclamam e imagino minha mãe comentando: "também precisa sugigar o lotação assim?" - sorrio. Imediatamente recorro à internet no telefone, pra conferir se a palavra existe: "Significado de sugigar: submeter pela força, controlar, dominar pela força, subjugar". Não é bem o que eu esperava: sugigar pra mim sempre foi chacoalhar, de forma agressiva. Dialetos familiares. Divago de novo. Jonathan e Lourdinha descem do ônibus e fico imaginando o restante daquela história. Percebo então que é minha vez de descer: do universo em que embarquei, da viagem que empreendi. Preciso abandonar meu condutor físico, é a minha vez de pausar a narrativa. Contudo, não abandono as histórias: é por elas que me conduzo, me levo, me carrego. Elas que me transpõem dos lugares de mim que preciso visitar e eventualmente deixar. Elas que me dão a frequência, a velocidade e os sons pra prosseguir. Até um novo destino, até a próxima parada. Então embarco novamente... 

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