Jogo de damas

Nunca jogava dominó. Ela gostava de jogar damas. E eles, tentando ser bons netos, sempre a deixavam ganhar. Mentira: ela é quem os deixava ganhar. Mas somente no início, enquanto não sabiam os truques do jogo. Da vida. Ela nunca teve um sentimento muito bem definido pela avó – única que sempre conheceu e conviveu, de fato. Lembrava-se daquela viagem à casa dos tios, quando ela apertou seu braço, no supermercado, exigindo obediência. Nunca se esquecera – e não devia ter nem seis anos de idade...  Ou quando lhe disse que parasse de pular como uma cabrita: a menina prontamente retrucara à senhorinha de cabelos eternamente acinzentados! Por que a neta agia assim com ela? Não sentia carinho ou afeto, parecia-lhe uma obrigação. Mas não tinha raiva, embora houvesse histórias que instigavam sua revolta e o ciúme dos primos. Parecia-lhe que era mais uma indiferença. Estranha para uma criança. Mas que cresceu. Cresceu num sentimento negado e no tempo. Mesmo quando a avó lhe presenteara em seu “debut”, a atitude causou a ela uma gratidão vexada, quase indevida. Seguia assim, cumprindo então os protocolos familiares e sociais. Seguiam em seu jogo de damas: a avó de seu universo consolidado, a neta descortinando o seu, como mulher. Nada alterou aquele ritmo, aquele acordo. Os anos passaram, os jogos cessaram. A mulher tornou-se mais indulgente e tolerante com a avó; a avó tornou-se mais triste e solitária, algo desejosa do afeto da neta. Que não tinha se desenvolvido muito, mas ainda assim estava ali, latente. Até que a vida encerrou de vez a partida, levou a avó para outros jogos. E agora a mulher sente falta de ter sido uma dama com a avó e jogado com (o) amor. Sente que perdeu a vez. Sente falta de um jogo de damas.

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